5 de abril de 2011

Lá de longe

Como não é novidade pra quem bem me conhece, eu adoro recordações. Sou daquelas cancerianas encasquetadas que, se pudesse, guardava cada pedacinho da vida numa caixa de papel só pra poder abri-la às vezes e sentir aquele momento de novo. Sou apegada às pessoas que me marcam, aos cheiros que descubro (tenho nariz de tatu) e aos lugares por onde passo. Chega a ser patética toda essa afeição. Fico relembrando aquela fatia que eu degustei, lambi os dedos e não me conformei quando acabou.

Daí a gente cresce. A caixa vai ficando maior, somando lembranças e ocupando um puta espaço. Eu, sem saber o que fazer com tanto peso, vou guardando umas fotos aqui e uma memória ali pra ver se consigo acomodar toda a tranqueira. A cada ano, o conteúdo dela cresce mais e mais feito bolo com dosagem extra de fermento que vai transbordando pelas bordas. Até não sobrar mais espaço, me restando enfiar os pertences do passado nos quatro cantos do presente. Pronto, disparou o alarme da nostalgia ensebada. Com toda a sabedoria de um jegue, eu peguei a minha caixa cremosa, colorida, coberta de chantilly e perfumada de lembranças e coloquei-a bem no meio do caminho, com direito a tropeço e praguejo. Depois do tombo e da cara quebrada, eu resolvi dar uma olhadinha pra trás pra ver o que estava me empacando. Qual não foi a surpresa frente à autoconstatação.

Não sei dos outros, mas eu tive uma vida bem legal até então. Simples e deliciosamente aproveitada. Infância nos conformes, brincava na rua, pendurava em árvore e vivia com o joelho esfolado. Adolescência digna de semvergonhices e faculdade muito bem vivida. Ah, a faculdade... quatro anos pra se guardar num potinho a sete chaves. Viciosa, para os íntimos, me rendeu a melhor época da vida.  Sabe, tava muito bom pra eu querer crescer. Mas caso o calendário poupe alguém, por favor me avise pra eu tirar as devidas satisfações com o tempo. Pois logo acabou a fase da malemolência e me tiraram a graça da despreocupação como quem tira doce de criança. 

Jura que meu tempo acabou?
Meus amigos agora marcavam presença na caixa de emails enquanto eu marcava vaga de emprego. Ficou tudo assim, meio sem graça, meio sem cor. Sem pensar muito, eu me vi na realidade cinza de São Paulo, aprendendo sobre números, direções e dissabores. O espelho não me reconhecia e a recíproca era dolorida e verdadeira. Nada do que estava ali me representava. Na esperança de me encontrar nas recordações, abri a caixa de papel pra tentar me achar. Inútil esforço. Trazê-la pra realidade só fez aumentar o desconforto. Enquanto eu tentava encontrar alguma saída, o óbvio apareceu pra me visitar. Chegou com intimidade, como se me conhecesse desde sempre. E de fato conhecia, só faltava me fazer enxergá-lo.

Foi quando percebi que saber trocar de cenário é saber compensá-los. É uma constatação evidente  (dã),  mas exige boa dose de sabedoria prática. Eu, que me achava muito sabida por sair de casa aos 18, lavar minhas roupas e fazer arroz sem queimar, me vi desnorteada aos 24. Passado o meu estágio de larva aprendiz, o que se deu a seguir não foi um novo começo de era de gente fina, elegante e sincera. E é justamente aí que nasce a astúcia da compensação, pequena gafanhota.
Talvez eu não tenha mais tantos amigos por perto, mas posso ligar pra eles e enchê-los de bobagem no ouvido a qualquer hora. E ser xingada por isso quando for de madrugada. Posso não ter mais as tardes tranquilas, mas preencho-as fazendo algo útil e ganhando uns trocados que chamo carinhosamente de salário. Também não tenho as festas lendárias da universidade, mas ganhei um bocado de lugares novos pra conhecer. Nem vou ter os mesmos chamegos e atenção daquele que ficou no passado, mas posso encontrar outras características que até então eram ausentes. Minha família está espalhada aos quatro ventos e contraditoriamente nunca tão unida como agora. Enfim, se eu parar de tentar reproduzir as experiências já vividas, vou encontrar um mundo tão cheio de novas possibilidades quanto aquele lá do início.

E ainda assim tenho a chance de selecionar os momentos e as pessoas que mais gostei pra guardá-los naquela caixa, no seu devido lugar. Porque né... o tempo é que nem funil, deixa passar só o que presta.

Eu, que sempre quis mais do mesmo, já não me contento com o mesmo de sempre.

9 Comentários:

Pablo Oliveira disse...

Gente, ahazouuu Claraaa!! BOM DEMAIS!! Acabo me sentindo um pouco assim, mas não saberia usar palavras tão sábias!!

Álvaro Demartini disse...

Tô chockado..... e com raiva do seu sumiço! Vai me dizer que sou um papelzinho picotado do seu passado e eu já providencio meu suicídio, tá?

Anônimo disse...

Cunhadaaa do céu!! Excelente!!
Espero que, agora com vc perto, a gente possa preencher um pouquinho sua caixinha do presente com coisas mais coloridas que a escala de cinza de Sampa.
Bjos

Clara Kümmel disse...

Gabiroba, você tem compartimento especial, do tipo que não se mede por ausência/presença. eu tô indo e eu vou te ver!

Cunha, o céu de sampa continua cinza mas vocês formam um pantone bem ajeitado! :)

Miguel disse...

Sensacional!
Cheguei até aqui dps de ler algo seu sobre o bookcrossing no pdh. O mais interessante: ouvindo jazz, que adoro, por causa do accujazz (acabei de conhecer por um de seus tweets e já está favoritado). Por sinal, o que toca agora é The Palace do Hristo Vitchev Quintet.

Acho que todos iremos nos sentir assim um dia. Que bom que você percebeu que ainda há tanto a aprender e desfrutar nessa vida.

Parabéns pelo texto e pela facilidade (ao menos a primeira vista) em transcrever tantas sensações!

Tive que deixar um comentário, pois você escreve mto bem e acho que elogiar não custa nada. Não me ache invasivo! haha

Boa páscoa!

Keep up the good work!

Clara Kümmel disse...

Miguel, querido desconhecido, fora a nobre meia dúzia de amigos que eu obrigo a ler meus posts (mentira), eu fico muito feliz que tenha gostado! :)

e pode elogiar quando quiser, pode falar mal também, puxar as oreia, aqui tá valendo porque eu ainda tenho muito chão pra fazer boas linhas.

bjo!

Miguel disse...

Oi, Clara!

Voltei pra puxar sua orêa!

De bobeira nesse tedioso domingo, resolvi entrar no accujazz e acabei lembrando do seu blog!

A parte ruim foi que vi que você o semi-abandonou :(

Seria legal ver outros textos como esse aqui. Se vc gosta, não deixe de escrever! Um leitor você já tem e nem precisa obrigá-lo a ler como faz com seus amigos! kkkkk

Bom final de domingo pra você!

Bjo

Clara Kümmel disse...

Vc é um fofo! :)

Eu tô meio enrolada, tô enrolando os textos do meu arquivo, enrolando a vida, a mãe, o pai, sacomoé!

mas essa semana eu juro que desenrolo. sem dedo cruzado.

e olha que eu gosto tanto de acreditar em providência do destino que elegi vc como uma delas. mesmo que seja obra do acaso! às vezes a realidade precisa de uma ilusão.

bjo sr miguel!

Miguel disse...

Oi de novo, Clara!

Obrigado pelo elogio. =) :*

Como estão as coisas por aí? Espero que tenha conseguindo desenrolar algumas situações e deixado o espírito procrastination de lado. (se sim, faz o favor de me dizer como! hahaha)

As vezes somos tão cegos que precisamos mesmo dos sinais, por mais óbvio que sejam as resoluções das nossas dúvidas e problemas.

Eu? Uma providência pra você? Engraçado ouvir isso, mas ao mesmo tempo foi algo mto legal de sua parte. E pq não? Quem sabe eu te ajude em algo...

Concordo com vc quando diz que precisamos de um pouco de ilusão. Não seria bem ilusão, mas perder o trilho, desviar do caminho óbvio e ver no que dá...

E wow! Um novo texto logo após esse comentário acima. As coisas surtiram mesmo efeito! hehehe Vou dar uma lida.

Bjo, Clara!

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